quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O Começo

Olhou e caminhou devagar até os seus rostos ficarem bem próximos. Encarou cada traço de tempo guardado, levantou a mão lentamente e, ignorando um tapa pecaminoso, acariciou os caminhos das lágrimas e suor que por ali estavam marcados. De repente sorriu. Não um sorriso largo e aberto, mas um de canto, quieto e fechado que confunde amor e desespero sem nenhum pudor ou malícia. Sorriu.

E sabendo o que estava fazendo e o outro sem entender o que estava acontecendo, beijou. Enquanto os lábios iam se tocando e se conhecendo a mão surtia efeito pelo pescoço e descia até encontrar os cabelos desordenados. A intensidade crescia conforme o medo, sem zelo, sem pausas, valendo todo o possível erro.

A mão que acariciava agora era forte, fazia com que aquele beijo se tornasse cada vez mais impuro. Foi quando sentiram diminuir a intensidade, devagar os lábios se separaram e aquele sorriso inconfundível tomou conta daquele rosto novamente, enquanto o outro não sabia o que pensar.

Escondeu o sorriso e, antes de voltar novamente as sombras, profanou:

- Agora és livre, não do teu pecado, mas das tuas dúvidas.

Foi embora deixando o outro ali, na frente dos grilhões quebrados e esse, enquanto pensava, percebeu que agora também havia descoberto como sorrir.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Um conto qualquer.

Ela abandonou os portões de casa com um destino, mas parou a esperar que outros passassem e em um instante resolveu fugir do seu cotidiano, abandonar a sua rotina e não pensar, definitivamente não pensar, ou apenas não esquecer seus problemas de amanhã.

Mudou a sua rota e no ponto mais clichê do seu dia encontrou o mar, se jogou na areia e contemplou o horizonte onde nada parecia ser feio ou bonito, certo ou errado, definitivo ou cruel, nenhuma regra, nenhum precipício, nenhuma escolha...Apenas vida, simples, nua, crua vida!

Foi quando ele chegou, sentou ao seu lado e ficou em silêncio. Era ele novamente, tinha chegado para fazer com que ela não se perdesse na ínfima linha do mundo real e ele adorava isso, adorava a ver caindo na realidade.

- Você novamente? – disse ela em tom de desanimo
- E você tinha alguma dúvida que eu apareceria? – disse ele ironicamente sem tirar os olhos do horizonte.
- Na verdade não – pausou.

E o silêncio tomou conta novamente, a presença dele já era o bastante para que ela não conseguisse mais se desligar do mundo que a cercava.
O barulho da nova chuva chegava devagar e ela se deitou enquanto olhava o céu escurecer aos poucos, a água não importava, a areia nos cabelos não incomodava. Ela apenas suspirou.

- Se você quer morrer por que não se mata logo? – disse ele
- Você, sendo minha consciência, não deveria me dar um conselho melhor? – indagou em tom de brincadeira
- Não, eu apenas falo o que você precisa ouvir, por que não se mata logo?
- Eu não quero morrer, oras.
- Então por que quer fugir do seu mundo?
- E quem não quer? O mundo me confunde, me machuca e até me mata, mas eu desisti de antecipar isso... Ainda tenho muitas gotas de chuva a contar.

Então ele se levantou, sacudiu a areia das mãos e, como nunca tinha feito antes, a olhou nos olhos:

- Então minha presença aqui já não significa muito.

E ele saiu andando sem olhar pra trás enquanto ela o olhava fixamente esperando que ele dissesse o que fazer a partir de agora, mas ele não disse. E foi ai que ela percebeu, de forma mais ingênua, mais pura e imperfeita, que a vida não é consciente, tem que ser vivida de maneira insana para que o mundo não passe por cima dos seus ideais, sonhos ou certezas e assim deve ser até o fim dos dias.

Ela se levantou e voltou ao seu cotidiano, mas não percebeu as marcas eternas que deixou ali, na areia do seu infinito clichê.